A Caneja de Infundice
Prato típico da Ericeira, onde entre Outubro e Março congrega os muitos indefectíveis amantes do desafio do limite.
Tem tudo de português, pelo desafio que coloca no início e pelo quanto se torna vício pela vida fora.
Poucas vezes o sentido primário de defesa da sobrevivência da espécie se manifesta com a clareza com quando domamos uma qualquer besta feiosa, espinhuda, linguaruda ou viscosa e a trazemos para menos de um metro. À distância todos são valentes e sabem exactamente onde se pega ou por onde se fura, mas perto é que são elas. A caneja – mustelus mustelus – pertence ao imaginário da Ericeira, é um cação e a sua arma secreta revela-se depois de morta, pelo cheiro nauseabundo que desenvolve e que carinhosamente se descreve como amoníaco mas é de urina velha que se trata. Puxa pela bravura, claro, mas pede prova recorrente a textura que o tubarãozinho apresenta depois das sevícias post mortem que lhe dão nobreza sem par. É aí que está a glória da caneja de infundice e não nos aspectos escatológicos por que nos deixamos arrastar. De nada adianta tê-la na conta de troféu ou besta amansada se não lhe fizermos as devidas honras à mesa. Mesa que para o português é festa e alegria, nunca pesar nem sofrimento.
Mantém-se a Ericeira como local histórico de origem da caneja mas na verdade é muito raro apanhar-se aqui. Açores e Mauritânia, aprendemos, é onde se fixa a pescaria e não é peixe fácil de encontrar na praça. Normalmente encomenda-se e faz-se em casa, a norma e a tradição seguiram por veredas diferentes nos restaurantes, mesmo os mais típicos. É quase tudo proibido. Socorremo-nos do jagoz – gentílico ericeirense – Leonel Carlos e da ciência de seu pai para nos preparar e servir a caneja de infundice. Leonel filho e seu irmão Mário, juntamente com Leonel pai, são a alma dos restaurantes Canastra – em frente ao mar e ao lado da discoteca Ouriço – e Vigarista, junto à igreja. Espaços de petiscaria competente e cascaria sempre renovada, podemos e devemos sentar-nos em ambos para ver como a Ericeira continua impante e luminosa, todos os dias em desfile festivo de tudo o que sabe bem. Demos, pela mão de Leonel pai, com uma receita que executa há mais de meio século e que passa pelo golpe inicial do corte da cabeça da caneja, costume de quem andou na pesca e conviveu a bordo com o peixe. É na cabeça que estão as enzimas que em menos de duas horas começam a destruir o peixe assim que morre. O frio é paliativo, mas é reduto que outrora não existia, o corte da cabeça e a sangra imediata são caminho mais seguro. Logo a seguir o bicho é cortado em postas de cerca de quatro centímetros e lavado várias vezes em água do mar, para que todo o sangue lhe seja retirado e só a carne alva fique. Mas ainda é cedo para descansar, falta quase tudo. Manda o bom costume que se encoste cada posta a um pano incolor de algodão puro, e que nenhuma posta toque na outra. A reconstituição do torso da caneja com as postas entremeadas por linho é toda ela colocada em saco escuro mas não estanque, e fresco como um frigorífico, mas há que evitar este último, com o risco de empestinar tudo o que lá está. Dura 7 a 15 dias esta fase, de desenvolvimento da infundice. A decomposição lenta da caneja vai evaporar a água intersticial das fibras, detalhando mais a carne. Neste caso é bastante mais prolongado, mas o fundamento de arrepiar com sal uma pescada por dois ou três dias antes de se cozinhar é o mesmo. Detalhe das fibras, aprimoramento do sabor. Quem já cozinhou cação sabe que ao fim de um par de dias começa a cheirar mal, o peixe de escama tem outro comportamento. A propósito, os países onde o tubarão faz parte da dieta alimentar deita-se fora quando começa a entrar nesta fase, o que confirma o estatuto especial da nossa caneja. Ainda há quem a enterre para que fique múmia de pergaminhos confirmados, mas é costume que não convence os Leonéis a que nos entregamos. Provavelmente enterrava-se apenas para que não se sentisse o cheiro, garantem, pai e filho, que o animal não ganha nem perde e que o processo deles é mais limpo. Disso não duvidamos.
Findo o período de estágio, retira-se os panos das postas e lavam-se várias vezes em água do mar, salgando-se ligeiramente. Nesta fase, é impressionante ver a alteração da textura do peixe, tudo muito mais recortado, reflexos madrepérola e… o cheiro que se esperava. As gaivotas apareceram e ficaram suspensas a contar com o petisco quando as postas foram colocadas a arejar ao ar livre e ao sol. Não se lhes pode virar as costas, desaparece tudo em segundos. A cozedura é imaculada, em tacho e sem passar do ponto, para não secar e perder o interesse como peixe delicado que é. Num outro, coze-se batatas inteiras com pele. Chega o momento sacramental de sentar à mesa e comer. Há um erro crasso que se comete desde sempre e que nos atrevemos a corrigir, nesta fase. A escolha do vinho certo para acompanhar a caneja de infundice. Todos os canhanhos rezam que todo e qualquer vinho que se sirva fica doce no contacto com a caneja. Há um fundo de verdade mas não é bem assim. Para já, estamos a falar de vinho tinto, e aí a tradição está mais que certa. O ácido málico presente no vinho branco esbarra na proteína modificada da caneja, nesta preparação de infundice. É só provar, fica um gosto metálico e amargo na boca, desagradável.
Diz-se que o vinho tinto adoça com a caneja e é verdade, quando se trata de vinhos correntes. A estrutura simples, sem estágio nem enologia cuidada, presta-se a que os polifenóis sejam destruídos sem complacências, restando no palato pouco mais que o álcool e o eventual açúcar residual, ambos sentidos como doçura. Se a máxima de que um vinho nunca é bom demais faz sempre sentido, aqui tem contornos de verdade absoluta. Pois é, acontece que a caneja de infundice, prato elementar e da tradição pesqueira, pede vinho tinto excelente. Há que lho dar, então! Devemos tentar servir-nos de uma posta aberta e outra fechada e a razão é simples. Na fechada a concentração de infundice é bastante maior, até por corresponder à região posterior do peixe, que por efeito do exercício de locomoção em vida acumula aí mais fibras, o mesmo é dizer sabor. Na posta aberta sente-se a frescura e o sabor é mais copioso do que concentrado. É interessante a comparação, o vinho certo é uma vez mais instrumental par ao efeito pretendido. Dito assim, parece fácil a refeição. Não é. Prepare-se para nas primeiras garfadas sentir uma espécie de gás a libertar-se pelas narinas, é o efeito do processamento prolongado do peixe mortificado. Fundamental regar previamente as postas com bom azeite, fica o conjunto mais equilibrado e a batata precisa desse complemento para resultar com o peixe. Não se come a pele, é preciso ter presente qua grande parte da putrefacção acontece entre a carne e a pele, pelo que há que rejeitar. Há quem a dispense logo de início, mas é coisa deslarada de se fazer pela complexidade que se comunica a todo o prato. Se a curiosidade for muita, prove-se a pele, mas avisamos desde já que é uma espécie de petisco do inferno. Se ainda estivemos na onda da virilidade e na zona de confusão que é a da falsa bravura da “besta domada” do início da peça, este é mesmo o derradeiro instante para isso. A partir daqui, somos nós os dominados e ficamos fãs para sempre.
Texto por Francisco Melo