Ensaios
Origens da Caneja de Infundíce
José Caré Júnior
Nas nossas averiguações de há meio século a esta parte, baseadas unicamente na literatura oral, (não encontramos bibliografia alguma sobre o assunto), nunca descobrimos dados concretos sobre as origens e preparação deste prato. A referência mais remota, também colhida na literatura oral, foi-nos prestada por um nosso familiar falecido com 98 anos cerca do ano de 1950, que nos disse Ter conhecimento de que o prato da caneja de infundice já se preparava e comia nos tempos de seus pais e avós, também longevos, o que nos dá uma referência recuada no tempo, de mais de 200 anos.
Há várias hipóteses sobre o caso, e uma delas reza que o prato da caneja, notando-se-lhe a constante de serem pessoas de meia idade para cima, e também que são muito avessos a qualquer forma de publicidade do prato.
Perante o risco já atrás apontado de se vir a perder a tradição deste prato, que é uma raridade gastronómica unicamente existente na Ericeira, aqui deixamos um registo da sua originalidade e virtudes.
depois de ser submetida a uma cura que dura uma semana, fazendo-a adquirir um aroma muito intenso e característico, a que os locais chamam “infundice”, palavra que os dicionários registam como significando “barrela de urina, em que se põe de molho a roupa muito suja, para depois se lavar melhor”.
De forma menos chocante, digamos que a caneja d’infundice liberta, antes da cozedura, um intenso cheiro a amoníaco.
Depois de apanhada, a caneja é amanhada e embrulha-se numa saca de serapilheira. Ao fim de três dias, tempera-se com um pouco de sal e volta-se a embrulhar durante mais quatro ou cinco dias, ao fim dos quais se junta mais um pouco de sal.
Completada a semana de cura, que deve ser feita em local escuro ou mesmo enterrada, a caneja liberta o tal cheiro a amoníaco.
Depois, em água abundante, coze-se a caneja, que nesta operação perde o cheiro a “infundice”. Serve-se com batatas cozidas, tudo temperado com azeite e vinagre. O resultado é um prato simples, em que o peixe tem um aspeto acinzentado e um cheiro levemente amoniacal, de sabor muito intenso e textura macia.
Curioso é que o azeite, que é dourado, fica com aspeto esbranquiçado e leitoso ao contacto com o peixe.
As gentes da Ericeira “onde este prato é considerado uma raridade e, por isso, só é preparado sob encomenda e em muito poucos lugares com porta aberta, daí que se deva reservar algum tempo para essa tarefa” sugerem que a caneja d’infundice seja acompanhada por um vinho tinto novo, muito encorpado e taninoso.
Cada garfada exige a companhia de um gole de tinto. Garantem que, mesmo um vinho de pouca qualidade, ganhará asas a acompanhar a caneja d’infundice. Esta será́ a opinião mais controversa de tudo o que se encontra ligado a este tão peculiar petisco. Um vinho de pouca qualidade nunca deve ter lugar à mesa de pessoas decentes.
Parece horrível a caneja d’infundice? Parece. Mas e a caça “faisandée”? E os queijos a que os bolores azuis dão odores e sabores saponáceos, como os apreciadíssimos “Roquefort” e “Stilton”? E também não há́ quem garanta, ante o delicadíssimo paladar e a untuosidade celestial do caviar de esturjão, que, tratando-se de ovas, preferem as de pescada? Como escreveu, com génio, o poeta português Fernando Pessoa, quando provou a Coca-Cola, “a princípio estranha-se, depois entranha-se”.
Daí que não se deva desistir à primeira. A caneja d’infundice, mais do que um petisco com o seu quê de inusitado, pode ser encarada como uma lição contra o preconceito. Ou um hino à diferença. Aí está!
Há na Ericeira uma confraria da caneja d’infundice, que assumiu o encargo de preservar e divulgar este prato estranho e raro.
Caneja de Infundíce: um petisco contra o preconceito
David Lopes Ramos
O tubarão ou o seu parente cação são bicharocos que, à primeira vista, repugnam aos olhos, quanto mais ao paladar.
Não nos apressemos, porém, nem deixemos lugar para o preconceito onde só deve haver curiosidade e largueza de espírito, como deve ser o caso quando de comida se trata.
Em Portugal, no interior alentejano, faz-se uma sopa com cação fresco, farinha de trigo, azeite, vinagre, alho, um ramo de coentros ou de poejos e fatias de pão de trigo que deixará rendido o paladar mais exigente, sobretudo se identificado com os segredos da dieta mediterrânica.
Percebe-se que, numa região do interior, onde já foi difícil, por insuficiências de vias de comunicação, fazer chegar os peixes mais delicados, o talento culinário se tenha apropriado de um monstrinho marinho mais resistente à decomposição fazendo dele um petisco apaladado e muito apreciado.
Estranho é que numa conhecida praia do litoral português, muito rica em peixes e mariscos nobres, a Ericeira “localizada a uns 50 quilómetros de Lisboa”, um parente do cação, a caneja, que dele se distingue por ter as barbatanas peitorais mais pequenas e apresentar, quer no dorso quer nos lados, pintas escuras, seja altamente considerado pelos pescadores locais.
Com a agravante da caneja não ser consumida fresca, mas apenas depois de ser submetida a uma cura que dura uma semana, fazendo-a adquirir um aroma muito intenso e característico, a que os locais chamam “infundice”, palavra que os dicionários registam como significando “barrela de urina, em que se põe de molho a roupa muito suja, para depois se lavar melhor”.
De forma menos chocante, digamos que a caneja d’infundice liberta, antes da cozedura, um intenso cheiro a amoníaco.
Depois de apanhada, a caneja é amanhada e embrulha-se numa saca de serapilheira. Ao fim de três dias, tempera-se com um pouco de sal e volta-se a embrulhar durante mais quatro ou cinco dias, ao fim dos quais se junta mais um pouco de sal.
Completada a semana de cura, que deve ser feita em local escuro ou
mesmo enterrada, a caneja liberta o tal cheiro a amoníaco.
Depois, em água abundante, coze-se a caneja, que nesta operação perde o cheiro a “infundice”. Serve-se com batatas cozidas, tudo temperado com azeite e vinagre. O resultado é um prato simples, em que o peixe tem um aspeto acinzentado e um cheiro levemente amoniacal, de sabor muito intenso e textura macia.
Curioso é que o azeite, que é dourado, fica com aspeto esbranquiçado e leitoso ao contacto com o peixe.
As gentes da Ericeira “onde este prato é considerado uma raridade e, por isso, só é preparado sob encomenda e em muito poucos lugares com porta aberta, daí que se deva reservar algum tempo para essa tarefa” sugerem que a caneja d’infundice seja acompanhada por um vinho tinto novo, muito encorpado e taninoso.
Cada garfada exige a companhia de um gole de tinto. Garantem que, mesmo um vinho de pouca qualidade, ganhará asas a acompanhar a caneja d’infundice. Esta será́ a opinião mais controversa de tudo o que se encontra ligado a este tão peculiar petisco. Um vinho de pouca qualidade nunca deve ter lugar à mesa de pessoas decentes.
Parece horrível a caneja d’infundice? Parece. Mas e a caça “faisandée”? E os queijos a que os bolores azuis dão odores e sabores saponáceos, como os apreciadíssimos “Roquefort” e “Stilton”? E também não há́ quem garanta, ante o delicadíssimo paladar e a untuosidade celestial do caviar de esturjão, que, tratando-se de ovas, preferem as de pescada? Como escreveu, com génio, o poeta português Fernando Pessoa, quando provou a Coca-Cola, “a princípio estranha-se, depois entranha-se”.
Daí que não se deva desistir à primeira. A caneja d’infundice, mais do que um petisco com o seu quê de inusitado, pode ser encarada como uma lição contra o preconceito. Ou um hino à diferença. Aí está!
Há́ na Ericeira uma confraria da caneja d’infundice, que assumiu o encargo de preservar e divulgar este prato estranho e raro.
Caneja de Infundíce
António Costa Santos
«A curiosidade matou o gato, é verdade. Mas também inventou o para-raios, levou o Homem à Lua, criou a caneja de infundice e descobrirá a cura da sida»
SERVE esta crónica para falar de curiosidade, que é o motor de toda a aprendizagem, mas está, no mapa das características, numa fronteira perigosa entre qualidade e defeito. E se está nesta fronteira não é por uma questão de excesso, que isso transforma muita bondade em maldade. Outras características há que têm vantagens em doses razoáveis e são uma desgraça quando aparecem em abundância, mas o excesso não se aplica à curiosidade – a bem dizer, ninguém deveria estar sujeito à acusação de ser curioso demais. A curiosidade é vista como um defeito apenas porque a qualidade de um curioso se torna frequentemente incómoda para os que lhe estão próximos, a família, os amigos, a sociedade em geral, para já não falar nos políticos, mas adiante.
Muitas vezes, sem consciência de que é a curiosidade que leva o ser humano a procurar o conhecimento novo e de que, por tal facto, criança que não fosse curiosa morreria estúpida, não procuraria perceber as razões deste ou daquele comportamento dos pais, não teria interesse em aprender sequer palavras novas, invetivamos um miúdo, em vez de lhe satisfazermos a necessidade de saber e chamamos-lhe sinónimos de abelhudo, atrevido, saidinho, insistente, intrometido, metediço, indiscreto, «não seja curioso, vá lá brincar». Felizmente, a seleção natural encarrega-se de defender a curiosidade no património genético da espécie, mais que não seja porque quem não fosse curioso só por acaso se reproduziria, uma vez que nunca se perguntaria por que é que os meninos são diferentes das meninas. Resumindo, vale tanto a pena reprimir a curiosidade como ficar com culpas por cometer esse erro: a curiosidade é inevitável e ainda bem.
Vem toda esta conversa a propósito de uma patuscada ritual que alguns ericeirenses praticam sempre que podem e para a qual convidam neófitos, por necessidade de acólitos e puro gozo de lhes estudar as reações. O prato chama-se caneja de infundice e foi inventado há tempos infindos por alentejanos que, a trabalhar na zona, levavam, na viagem de regresso para a planície, o referido peixe, que se ia degradando com o tempo. A pobreza e a curiosidade levaram alguém a servir-se dele, cozendo-o, apesar do odor intenso a, digamos assim, amoníaco. E o manjar estava inventado. Hoje, embrulha-se a caneja em trapos e jornais, infunde-se o embrulho uns dias em local seco que não sirva para habitação, por causa do perfume, e depois coze-se e acompanha-se com vinho, o qual, avinagrado que seja, sabe a reserva de luxo, em virtude de a língua ficar anestesiada à segunda garfada de caneja. Um prémio para curiosos, no bom sentido das duas palavras.
A “Caneja di Fundiço” que o Padre da televisão comeu
Manuel Pedrosa, in O Jornal
Vai para dez anos ou mais, quando comi, pela primeira vez, a “caneja di fundiço” que o frade do programa “Caldo de Pedra” da RTP comeu um dia destes na Ericeira fiquei a pensar em escrever um artigo sobre este petisco que tão poucos conhecem e que, apesar disso, tem um certo interesse culinário.
Estou convencido de que este prato está intimamente ligado à gente do mar, ou melhor, à faina da pesca. Mais: estou convencido de que se trata de um prato de pescadores e que a sua origem não é portuguesa.
A primeira vez que comi aquilo a que em Portugal se chama “caneja di fundiço” foi à muitos anos – à mais anos que eu desejaria – no decorrer de uma curta visita que fiz à Islândia. Aí, em casa de uns amigos, serviram-me um peixe cozido fortemente amoniacal, que eu nunca comera e que me afirmaram ter sido preparado no quintal, onde fora envolto em panos e enterrado à mais de um mês. Dias depois, constatei que estas informações eram verdadeiras: vi embrulhar uns peixes, que tomei por cações, em ligaduras de pano e vi enterrá-los debaixo de um metro de terra a fim de cozinharem durante “uns meses”. Profundamente interessado em saber mais coisas acerca deste curioso método de preparar peixe, tratei de pedir informações e soube que aquilo era um prato nacional da Islândia e que as suas origens eram remotas: os pescadores que iam pescar, durante o verão, longe das suas terras, preparavam estes peixes desta forma, antes do regresso a fim de, no verão seguinte, terem de comer ao chegar novamente às suas bases piscatórias de verão. Em casa, o processo fora encurtado, já que, em lugar de o enterrarem, se limitavam a conservá-lo uns dias antes de o comerem. Posteriormente, soube que a receita era usada por certas tribos de índios do Alasca e que o processo era conhecido no Norte da Europa.
Podem calcular o meu espanto quando, anos decorridos, encontrei o prato nacional da Islândia na pacata vila da Ericeira!
Tivesse eu comido “caneja di fundiço” num porto ligado à pesca do bacalhau e teria pensado que o prato viera dos bancos da Terra Nova ou que a receita fora apanhada lá para as terras dos “icebergs” pela nossa gente da faina do bacalhau, mas ali, na pacata Ericeira, a coisa fez-me confusão. Esta confusão assenta, sobretudo, no facto de não haver “caneja di fundiço” noutras localidades piscatórias e de ninguém saber desde quando é que o prato é tradicional na vila. As muitas pessoas a quem recorri pedindo informações – algumas delas ligadas à gerações à vila e atentas à sua história e aos seus costumes – apenas me souberam informar que sempre se comeu e algumas, curiosamente, juraram-me a pés juntos que era proibido confecioná-lo ou vendê-lo.
Depois da projeção do “Caldo de Pedra” em que o frade comeu este prato em casa de um pescador, apareceu muita gente, na Ericeira, a pedir “caneja” , algumas nos restaurantes da terra e outras em casas particulares. Ao que parece, sempre se aprende alguma coisa na TV…
Devo dizer que a “caneja” não é o único prato curioso nem a única forma de cozinhar divertida e estranha que vai aparecer neste programa, o que me leva a crer que vai aparecer muita gente, por esse país fora, a pedir coisas de que nunca ouvira falar. Depois, já, de projetado o filme, obtive outra informação curiosa: uma receita escrita à muitos anos (1890?) ensinando a forma de preparar “caneja”. O que mais me interessou nesta receita, que me foi enviada por um “amador” dado a colecionar receitas antigas (oxalá́ houvesse mais…), foi que de acordo com as instruções escritas à mão por uma senhora que ia passar o Verão à Ericeira, a “caneja”, depois de destripada e de preparada, devia estar enterrada pelo menos oito dias, o que a aproxima muito da que vi preparar na Islândia.
Será que, inicialmente, a “caneja” da Ericeira era enterrada e que essa forma de a preparar foi sendo substituída pela moderna ? Será que ainda hoje se enterra? Afirmaram-me que esta segunda hipótese é verdadeira e que ainda há, na zona da Ericeira, quem a enterre. Pessoalmente, só posso dizer que há muitos, muitos anos, a comi exatamente como ela apareceu no filme do frade e que um escritor português, dado a passar longas temporadas nessa vila, teve uma experiência semelhante à minha.
Se algum dos meus leitores puder deitar luz sobre este mistério, cá fico aguardando um esclarecimento que nos interessa a todos, já que a história de um prato faz parte integrante da história da cultura de um povo.
Versos dedicados à Caneja de Infundice
José Caré Júnior
Este prato de caneja
É manja quási irreal
Só Ericeira o prepara
Em todo o nosso Portugal
É prato tão original
Que só se conhece aqui
Neste Portugal desconhecido
Como dizia o SNI
O indígena da Ericeira
Que não goste e diga dicas
Ali, mesmo sem rodeios
Leva roda de maricas
O forasteiro que à primeira
A come sem hesitações
Conquista um lugar à parte
Dentro dos nossos corações
Nazaré, Peniche, Sesimbra
Terras de grande nomeada
Na gastronomia do peixe
Da caneja, dizem nada
E já se estabeleceu
Sem margem para enganos
A caneja da Ericeira
Tem mais de 200 anos
É um prato merecedor
De vinho com boas regras
Está fora de qualquer hipótese
Ser comido por piegas
Aquele que diz não gostar
Deve ter algo de maníaco
Porque o cheiro é tão somente
Da família do amoníaco
O nosso prato da caneja
É gastronomia pura
Pois só pode ser comido
Por gente de barba dura
À caneja da Ericeira
Nenhum gastrónomo diz não
É cheia de virtudes
P’ra da Ericeira ser brasão
Este prato é mesmo repleto
De qualidades positivas
O que nele mais espanta
São as propriedades digestivas
Comer a nossa caneja
Não é tarefa vã
Aqui na Ericeira
É um ritual de clã
Ó gentes de longes terras
Que bons olhos os veja
Longos anos ides viver
Comendo a nossa caneja
Vamos terminar esta ode
Homenageando os presentes
Ao saborearmos este peixe
Ficamos melhor das mentes.